– Bem lembrado... – Aina recapitulou a decisão do chefe, olhando para cima para se lembrar – Antes deste raciocínio todo, você tinha decidido ir para Sampa. Tem explicação, certo?
– Sim. Primeiramente, eu já tinha raciocinado isso antes de decidir ir para lá. Mas também por eu precisar de fotos daquele local tiradas em 2002... infelizmente, estas aqui são de 2004 e eu já imaginava que não iria encontrar mesmo... São Paulo é o melhor lugar para encontrar informações deste tipo. Quero ter certeza de que aquele local coberto esteve assim desde cinco anos atrás... posso olhar também alguns anos antes, quem sabe não acho algo interessante?
Ao divagar sobre o que fazer, o detetive lembrou-se de mais necessidades:
– Por outro lado, vou procurar mais informações locais sobre possíveis invasões em outras cidades. Se houve, quero saber por qual razão parou de ser veiculado... se não tiver, é Ituverava mesmo o próximo ponto de partida. Invariavelmente, estarei no lugar mais apto para tais pesquisas.
Neste momento, Allan fez uma expressão desanimada:
– Aliás, torça para não ter mais notícias sobre invasões como aquelas... se houverem mais cidades, talvez eu realmente não consiga achar o infeliz...
– Vou torcer... – Aina deu de ombros. De alguma maneira, achava impossível seu chefe confundir as possibilidades, mas não quis comentar suas impressões positivas.
Já Allan achou que sua secretária tinha desconfiança sobre sua capacidade de localizar o hacker. O detetive, por fim, finalizou seu raciocínio:
– Se as pessoas da lista são ajudantes e não alvos como inicialmente parecia, ao invés de me entregar a posição correta de cada uma, nosso solicitante talvez esteja me testando. Acho que ele sabe algo... ou tem conhecimento sobre a localização de nosso hacker, ou sabe pelo menos que Modeerf e Y0uTopic são uma única pessoa. Por isso quero chegar nele primeiro. Ele talvez seja a chave de tudo.
– Ou não... – Aina exercia sua tranqüilidade – mas seu raciocínio está bem embasado, acho que não há com o que se preocupar. De qualquer maneira, quando pretende viajar?
– Hoje ainda.
– Quê? – A secretária faltou cair pular da cadeira. – Como eu farei o serviço? Você sempre costuma se organizar uma semana antes de sair, para que eu não fique sobrecarregada por aqui!
– Não se preocupe... durante minha viagem, passarei a parte da noite com materiais dos meus outros casos. Só de dia trabalharei nesse caso principal.
– Ah, claro... me dê só um minuto, vou ali me matar e já volto, beleza?
– É sério, pode ficar tranqüila que eu conciliarei sem problemas... – Allan via o desespero se sobrepondo à qualquer traço de sua secretária.
– Você dará conta? – Aina se preocupava com a quantidade de casos em suas mesas, embora soubesse que seu chefe não confiava em ninguém além dela para solucioná-los.
– Sim, sim... eu darei um jeito... aliás, tenho uma notícia boa para você!
– Oba, qual? – Aina automaticamente se interessou.
– Sabe os dez dias que lhe ofereci? A partir de amanhã!
– Ei, eu não consegui acertar, lembra?
– Não tinha essa esperança... era muita loucura para fazer algum sentido! – Allan estava aos risos por já ter decidido liberá-la desde que a propôs o descanso, embora pretendesse nunca contar à sua secretária este detalhe. Procurou alguma desculpa para justificar o bônus:
– Considerando esse fato e você ter desenvolvido bastante dentro dessa mínima lógica, vou te dar os dez dias!
- Eu vou chorar de alegria! – Aina realmente queria o descanso, pois precisava de mais tempo para estudar em seu último ano de faculdade.
- Certo! Então vou comprar minha passagem e ajeitar minha mala, mas antes ajeitarei meus casos! Em dez dias nos falaremos de novo. Até lá, esqueça de mim e do trabalho por aqui!
– Esteja certo que irei! – Aina personificou a palavra felicidade, o que fez seu chefe ficar satisfeito do mesmo modo. A secretária, porém, parou por um momento:
– Espera... você não disse que ia hoje ainda? Como preparará tudo?
– Agendando o vôo para a madrugada de amanhã...
– ‘Madrugada de amanhã’ é ‘amanhã’ e não ‘hoje’, ora!
– Eita, dificuldade... ‘amanhã’ só é ‘amanhã’ na hora que eu acordar, pode ser?
Ambos riram juntos e conversaram um pouco mais, de maneira despreocupada como não poderiam por um bom tempo. Uma vez iniciado um caso que não Allan teria que solucionar – mas sim Eoin – era natural que o detetive ficasse mais tempo fora, enquanto sua secretária sobrecarregada trabalhava em ritmo dobrado para manter as atividades ocultas de seu chefe fora de suspeitas.
Allan passou o pouco resto da tarde separando vários casos que ficariam sobre sua responsabilidade, enquanto Aina recebia outros que ficariam em sua incumbência. Conseguiu sua passagem para a madrugada conforme havia planeado. Após o expediente, despediu-se de sua secretária que já se encaminhava ao seu carro, desejando boa sorte e bom trabalho um ao outro.
Embora Aina sempre oferecesse, o detetive negou a carona, como habitualmente fazia. O frio que Porto Alegre oferecia o levou a desfrutar de uma volta a pé até sua residência desorganizada com direito a três cigarros. A sensação da falta de calor e o vento cortante lhe eram nostálgicos e ele se desligou por alguns momentos do caso que o faria viajar para terras quentes. Encontrou um velho mendigo na rua, que lhe disse:
– O sinhô poderia me arrumá não um dinheiro, mas algum trem pra comê, pur favô?
– Não tenho dinheiro algum, agora me dê licença! – Disse Allan, rispidamente, desrespeitando-o com ar de quem se incomodou com o pedido de esmola.
– O sinhô desculpa coqué coisa... e ‘brigado de coque manêra'...
Allan deu as costas ao mendigo e, de acordo com a resposta humilde que recebera, foi à padaria mais próxima e comprou algo, voltando ao local onde o velho se encontrava. Deu um pão e um iogurte ao mendigo, algo como lhe foi pedido.
– ‘Gradecido de coração, viu, sinhô! – O mendigo agradeceu com um grande sorriso que até lhe fechou os olhos, devolvido pelo detetive com outro de mesma intensidade. A resposta grosseira de Allan era apenas um teste às reações do velho homem, dando ao detetive a certeza de que bem atendia uma pessoa de boa índole. Conversou um pouco com o indigente e, com o evento, lembrou-se de Skin por um momento, olhando para cima como conseqüência. O frio nostálgico fazia muito mais sentido agora.
Aina chegou em casa e, à despeito das necessidades universitárias, decidiu-se por descansar aquela noite. Sua intenção era única e exclusivamente obter o máximo de energia para resolver todas suas pendências estudantis e adiantar o máximo possível dos casos escalados pelo seu chefe.
Allan chegou ao seu desarrumado apartamento, fruto de copioso abandono. Procurou algumas camisas mal passadas e fez sua mala em pouco tempo. Pegou uma parte do dinheiro em espécie guardado em casa que recebera de outros casos como Eion, reservando-os para suas viagens. Aproveitou para deixar o aluguel pago com a síndica do prédio e logo depois voltou ao seu apartamento para tomar um banho.
O detetive fumou alguns cigarros aproveitando a vista central noturna de Porto Alegre que sua janela proporcionava e, finalmente, pegou suas duas malas, seu notebook e sua pasta com documentos sobre seus casos selecionados. Foi-se de táxi para o aeroporto poucos minutos antes de sua viagem marcada para duas da manhã.
Ao passo que o avião levantava vôo, Eoin sabia que agora realmente começaria seu trabalho. O período de viagem se tornou uma preparação psicológica para o que viria e, neste caso específico, ele precisava disso mais do que nunca.